terça-feira, 29 de março de 2016

Iggy a atirar-se ao mundo uma última vez*

Sim, já fui cuspido por Iggy Pop. Em 1991, no Coliseu do Porto.
Infelizmente, o virus não me contaminou o suficiente para fazer de mim um tipo-vicious. Provavelmente, se tivesse sido cuspido dez anos antes, no Infante Sagres, a força de Iggy conseguisse penetrar-me as entranhas e me levasse mais longe.
Ainda assim, o cuspo foi o suficiente para lhe reconhecer o estatuto de lenda viva, um dos últimos moicanos capazes de nos fazer fervilhar o sangue à mesma medida que uma dose borbulha na colher antes de ser cortada com limão.
O rock visceral, puro, sem pretensões estéticas mas ilusões sonoras, afastou-se das multidões eléctricas, por isso, Iggy fez a travessia no longo deserto mas, como os Stones e Bowie, fê-lo de bom grado e com maior pureza. Fê-lo sem rede, sem roupa, sem nada, terá mesmo sido o único sem recaídas, algo que não surpreende pois, para Iggy, rock é rock (rocha), pouco dado à flexibilidade de Jagger ou ao camaleonismo de Bowie.

Mas diz-se que será a última de Iggy, mas não acredito, não será, porque ao contrário de Bowie, Iggy Pop não morrerá, ele é incapaz, nem sabe como. Ou por outra, ele já morreu, demasiadas vezes para agora...morrer. Pop é um duro, o último dos duros num rock que já não serve mas é demasiado teimoso para ceder, para mudar.
Sim, fui cuspido por Iggy Pop, right in the face,  não me fez ver a luz, mas certamente entrou mais claridade em mim.



Envelhecido e esclerosado, mas longe de derrotado,
a atirar-se ao mundo uma última vez.
 
  
É uma despedida. Di-lo o próprio autor, ainda que sem certezas, porque sabe-se lá onde estará e o que quererá fazer Iggy Pop daqui a cinco anos, que foram os mesmos que demoraram os LCD Soundsystem entre o concerto de adeus e o olá recente. Certo é que foi pensado e gravado como despedida. Um derradeiro gesto depois dos álbuns com os Stooges em que, confessava à Mojo este mês, fizera o que Ron Asheton e James Williamson lhe pediram que fizesse, e depois dos álbuns a solo enquanto crooner com predilecção pelo universo da canção francesa. Esse peso sente-se em Post Pop Depression e iríamos senti-lo mesmo sem essa nota de contexto.

Gravado com Josh Homme, vocalista e guitarrista dos Queens Of The Stone Age em quem Iggy viu alguém capaz de compreender o seu legado sem cair na reverência, e contando com a ajuda de Dean Fertita (Queens Of The Stone Age, The Dead Weather) e de Matt Helders, baterista dos Arctic Monkeys, é um álbum que mergulha em fantasmas do passado para aí encontrar uma vitalidade redescoberta. Não encontramos aqui o Iggy Pop incendiário e excessivo, qual bomba detonada sobre o rock’n’roll adormecido e a burguesiazinha que se compraz em confronto. É crooner de voz cava e ameaçadora – “I’m gonna break into your heart / I’m gonna crawl under your skin” – mas essa ameaça é, basicamente, o resumo do que Iggy Stooge fez connosco desde que No fun e I wanna be your dog dinamitaram em 1969 o mundo do rock tal como o conhecíamos. É essa voz profunda que nos conduz, canção a canção das nove que compõem Post Pop Depression. Essa voz é o álbum e esse acaba por ser o maior elogio que podemos fazer ao trabalho de Josh Homme – o de ter criado os cenários perfeitos para que Iggy hoje, o Iggy que se despede, pudesse revelar-se.




Em Post Pop Depression ouvem-se várias camadas sobrepostas: Gardenia é portal ligando-nos ao trabalho com David Bowie no final da década de 1970, de que resultaram os imprescindíveis The Idiot e Lust for life, mas é baptizado com nome de uma stripper que, certa noite há muitas décadas, Iggy e Allen Ginsberg tentaram seduzir – e é conto sobre o que se esconde atrás do glamour tão cintilante: “American’s greatest poet / was ogling you all night / You should be wearing the finest gown / But here you are now / Gas, food, lodging, poverty, misery / and Gardenia”.

Em Post Pop Depression Iggy é o pregador sem púlpito e sem religião que transforma a melodia apontando a oriente de American Valhalla (memória de China girl, a que foi dele e de Bowie?) em conto gótico do rock’n’roll americano, com a mortalidade a mostrar-se sem pudor e Iggy a deixar cair a máscara: “I have nothing but my name”, dirá e repetirá no fim.





Perante o negrume e o coro tétrico de Vulture, perante essa Paraguay que se despede e que faz a despedida do álbum com Iggy confrontante, sozinho contra o mundo como no início de tudo e despejando bílis sobre a inanidade que o rodeia (“There’s nothing awesome here, not a damn thing; there’s nothing new, just a bunch of people scared; everybody’s fucking scared, I’m tired of it”), a tentação será dizer que este é o melhor álbum de Iggy Pop em [inserir um número avulso de décadas]. Post Pop Depression merece mais que isso. É o álbum de Iggy Pop, 68 anos, envelhecido e esclerosado, mas longe de derrotado, a atirar-se ao mundo uma última vez. É uma derrota muito digna. É uma vitória tocante.
  


*Credits do segundo texto:
Público/Mário Lopes

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