domingo, 31 de janeiro de 2016

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

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“ - Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?
- Como não faço o mesmo?
- Oh, não faz...Se o fizessse, já me tinha beijado...”

― Vergílio Ferreira, "Aparição"


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Um cigarro com Cale


Leio que John Cale está de volta com uma reedição do proscrito "Music for a New Society", editado em 1982, dando continuidade à tentativa, quase sempre falhada, de se afastar da estética Velvet Underground onde, na sombra de Lou Reed, foi sendo o guardião não-genial, da linhagem principesca dos "Factory Protected".
Em 1988, ainda em plena luta interior, John Cale vai ao Porto, ao Rivoli, mostrar aquilo que julga ser um falhanço mas, sabíamos nós na altura, continuamos a sabê-lo agora, roçava a genialidade que sempre lhe fora negada pelos holototes de Reed e pela rigidez criativa dos Velvet. O concerto era obrigatório, como quase todos numa altura em que Portugal não tinha arregaçado as mangas e conseguido o spot nas agendas dos que valem a pena.
Chega a ordem do chefe: "Vai falar com o gajo antes do sound-check".
Falar com Cale vinha com a promessa da presença no concerto e com a obrigação de mergulhar o mais possível nas entranhas obscuras de alguém que havia estado onde sempre quis estar e feito o que sempre quis ouvir mas nunca verdadeiramente conseguira fazê-lo. Sim, já tinha devorado "Fear", "Paris", "Artifitial Intelligence" ou "Even Cowgirls Get the Blues", mas devorado é uma coisa, ouvido é outra e nos 80 o tempo era escasso e o corpo impedia mais absorção.

Final da tarde. Antes do sound-check, lá estava o puto à espera do Cale. Gravador na mão, em cima do palco, onde só estava o piano. A espera não era difícil porque, nos 80, havia formas de nos mantermos cool, ou melhor, ainda há mas desabituei-me delas. Enquanto isso, acendo um cigarro - sim, nos 80 fumava-se onde nos apetecesse - espero e o tipo entra-me no palco. Ainda sem hipótese de lhe dizer quem era, Cale desata a olhar para o piano de todos os ângulos possíveis e imaginários. Não está de boa cara, a ressaca parece-lhe cool e evidente. Segue-se uma discussão bizarra entre Cale e um qualquer roadie de ar mais gasto do que Cale e a razão estava explicada: o piano estava deslocado do local previsto uns 5 centímetros. 
A coisa está quase a acalmar e John Cale finalmente repara em mim. E foda-se, a primeira coisa que me diz é algo do género: "And you, who are smoking in my stage, are...?". Nesse momento não engoli o cigarro porque isso não era cool, mas recordo-me que o inglês que saiu da minha boca, para me apresentar, foi trémulo, ainda que com a pronúncia correcta. "Let's go then, 20 minutes", diz Cale já acompanhado pela RP que lhe volta a explicar quem era o asshole que estava ali a fumar - "Yeahh, i know, i know...". 
O tipo senta-se no banco do piano, eu ligo o gravador, pouso-o no piano, sento-me numa cadeira meio na diagonal e antes mesmo de lhe fazer a primeira pergunta, enquanto confirmo os níveis da gravação, John Cale, acende um cigarro e olha em volta à procura de um cinzeiro.


Aos 73 anos, Jonh Cale está liberto de toda a bullshit que os 80 ofereceram, no caso deste ex-Velvet Underground, uma continuação dos 70. A reedição do "Music for a New Society" e a junção a um "M:Fans" com novas propostas para os velhos temas geram curiosidade em mim e o puto cool, agora nada cool, dá por si a pensar que, se a entrevista com o John Cale fosse hoje, continuaria a ser banal mas já não haveria cigarros no palco, nem mesmo um Cale colérico por um erro de cinco centímetros. Haveria, isso sim, o mesmo entusiasmo, agora adoçado, eventualmente, com troca de memórias, com Cale, uma vez mais, a ganhar.




sexta-feira, 22 de janeiro de 2016


“No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos”
de Cláudia Varejão


Bouchra Ouizguen, coreógrafa marroquina é grande. Nunca calçou pontas, nunca seguiu para Oeste, ou para Leste. Em Marraquexe, aprendeu, sentiu e não esperou, começou furiosamente a criar com base no horizonte que alcançava. De forma insuspeita, inocente até, nem sequer se apercebeu que o Mundo estava atento e lá, do horizonte que não alcançava, a fúria de Bouchra atacou como um sereno tornado.
O horizonte que incorporou não ía, não precisava, de ir além das pequenas aldeias marroquinas que, de passagem, de curiosidade, marcava com movimentos, sinceros, crus, genuinos e, por isso, belos. "Madame Plaza", reconstituição viral das tradições Aítas, valeram-lhe o primeiro prémio. O Mundo, para além do horizonte que alcançava estava atento. Bouchra compreendeu o silêncio, a luz, a morte e o corpo, e foi com o corpo que deu corpo ao Mundo que, desesperadamente queria alcançar, sem ruído, sem alvoroço.


Em 2012 procurou mais horizonte, procurou-o por perto, pelas montanhas, bares e escolas marroquinas de onde apontou no pequeno Moleskine, os sons e os movimentos que importam; apontou mais que isso, escreveu "alegria", no adjectivo fundamental do horizonte que alcançava, agora maior, igualmente pequeno, tradicionalmente marroquino. Mas Bouchra é mais do que Marrocos, Bouchra é Mundo, o Mundo que está atento a Bouchra. Bouchra é, agora, pedaço de Djalál ad Dîn Rûmî, poeta persa, poeta místico sufi, e peça que faltava para colocar em palco "Ha!". "Há!" é tudo isso, tudo isso que Bouchra é, tudo o que quer para nós e nós, pelo corpo, pelo som, suspiramos o inevitável: Bouchar Ouizguen é grande.


A dança de Bouchra já sai de Marrocos. Já atravessa o Mediterrâneo e já alcança velhos amigos, em Portugal. "Ha!" estará amanhã no Rivoli do Porto que, educado como é próprio de um velhinho de 86 anos, recebe a coreógrafa, em festa, festa portuense para Bouchra que retribuiu com a alegria que apontou no pequeno Moleskine. Já pronta para nos mostrar o que é isso de ser marroquino, que alegria é essa que nos soa a vento quente do sul, Bouchra é grande e as grandes são gererosas. Sem se esquecer que um dia alcançou os pequenos horizontes, Bouchra foi alargar os horizontes de quem os viu, repentinamente encurtados pela sombra de uma cela.


Fazia frio e chovia, coisas que Bouchra pouco conhece. Mas conhece os pequenos horizontes e foi por eles que, na prisão de Santa Cruz do Bispo, deu um workshop. Generosa, ofereceu o vento quente do sul e a luz intensa marroquina a quem busca novos horizontes e permanece sedenta por alegria, a alegria de "Ha!" que terá sido bem mais sentida ali do que quando, amanhã, o velhinho Rivoli, ainda preso pela etiqueta e solenidade de tão provecto aniversário, conseguirá absorver. Mas Bouchra sabe-o, tal como sabe que os horizontes marroquinos nunca serão os horizontes europeus, largos mas espartilhados, bem diferentes da poesia de Djalál ad Dîn Rûmî, ou dos odores recolhidos nos bares de Marraquexe. No entanto, desistir não é opção e o Mundo, atento, gosta da persistência de Bouchra. Eu também...

Toda forma que vês
tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.
Se a forma esvanece, não importa,
permanece o original...

As belas figuras que viste,
as sábias palavras que escutaste,
não te entristeças se pereceram...

Abandona este filho que chamas corpo
e diz sempre Um; com toda a alma.
Se teu corpo envelhece, que importa?
Ainda é fresca tua alma.

Djalál ad Dîn Rûmî

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016


Escultura de  Isaac Cordal, em Berlim, Alemanha,
 intitulada "Politicians Debating Global Warming"

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Taking me by the hand


Arrancar com os textos fazendo referência a um morto não pode ser um bom presságio mas, afinal, David Bowie nunca foi um bom presságio. Bowie foi o mainstream do underground, o que nos levou mais fundo do que nunca sem que o sentíssemos verdadeiramente na pele mas estávamos lá. Estive lá e quase nem me apercebi.

Quando em 90 entrava no Estádio de Alvalade o imaginário tomava conta do corpo, Demasiado pequeno para dividir realidades, via-me próximo de assistir à reencarnação de Ziggy, à aparição de Major Tom, em exacta réplica de um qualquer concerto em Berlim, na altura, meca do alternativo representado e apresentado por Bowie. Alvalade foi desilução, pelo menos do que dele me recordo, já que, tal como em Berlim, Stardust apenas aparecia a quem já não o veria, talvez, sonharia, triparia. Mas ele, Bowie , esteve lá, existia.

Já antes nos fizera companhia, na pequena discoteca de centro comercial onde Reininho lambia o ressuado dos canos ao som de Iggy, com a batida de New Order, ou o embalo de Sioux and The Banshees. Por lá, Bowie estava imortalizado na parede, não havia outro. Na pequena discoteca de centro comercial, fomos ao fundo, ao mais fundo que os nossos pequenos corpos deixaram e Bowie levou-nos pela mão.

À magnificiência camaleónica foi permitida a passeata pelos 80's, uma espécie de regresso à tona para respirar ar puro, recuperar do rarefeiro e preparar um novo mergulho, entre os The Wire e o Blackstar, Bowie manteve-se rastejando no experimentalismo inovador de quem calçou luvas brancas e red shoes, aturou Jager e Turner, tentando a normalidade mas mas acabou a fazer amor com Pop, Iggy Pop, e a comer as entranhas de Lazarus. Era mais forte do que ele.

"Look up here, I'm in heaven
I've got scars that can't be seen
I've got drama, can't be stolen
Everybody knows me now

Look up here, man, I'm in danger
I've got nothing left to lose

I'm so high, it makes my brain whirl..."

(David Bowie's Lazarus)




terça-feira, 5 de janeiro de 2016